O clube do 22 de Novembro, como os nossos pais o chamavam, formou-se numa noite como esta, de ar húmido e saturado, no alpendre da minha antiga casa mesmo á beira do rio. Eu estava sentado junto á lareira, numa poltrona de pele vermelha, naquele que era o meu cantinho predilecto para colocar a leitura em dia. Ali, aventurava-me nos romances famosos, como A Ilha do Tesouro, A Máquina do Tempo, As Viagens de Gulliver, e outros clássicos cujas loucuras da juventude não me haviam deixado desfrutar no tempo devido.
- Tudo bem. – pensava para comigo. – Uma boa história nunca chega tarde demais.
Mal eu sabia a verdade nas minhas palavras, nessa noite. Qual profecia escrita na pedra, tornaram-se um lema para o resto dos meus dias.
Sentado no meu canto, aconchegado, folheava lentamente, uma a uma, as páginas da minha mais recente pesquisa literária. Tratava-se de uma cópia, muito velha, da obra-prima desse poeta louco, Jack Kerouac, Pela Estrada Fora. Passara por muito, o pobre livro, e já tinha as páginas amarelecidas e um pouco rasgadas quando o encontrei numa antiga arca dos meus pais. Agora, lia-o maravilhado, com dezenas de personagens que desfilavam diante de mim, cada uma mais insana e fascinante que a última. Entrava eu no sétimo capítulo quando ouvi pancadas na porta.
Levantei a cabeça, alerta, e ouvi-as de novo. E mais uma vez, ainda antes de me poder soerguer. Quem quer que fosse, era impaciente. Não teve chance de bater outra vez, pois escancarei a porta velozmente. Lá fora estava um rapaz da minha idade, sujo, e vestido apenas com uns jeans e uma t-shirt branca. Aos seus pés, um saco de viagem esfolado, cheio até ás costuras. Trazia na cara um sorriso gozão e uns olhos cravados da falta de sono.
- Ei, John! Como vão as coisas?
Olhei para o rapaz com ar indiferente, mas cauteloso. Fosse quem fosse, sabia o meu nome. Tornei a analisá-lo, de alto a baixo, e consegui formar um pensamento, uma memória, mas estava atolada em lixo burocrático na confusão em que havia transformado a minha cabeça. Não tinha chance de ver claridade. A menos que…
Sem hesitar, ou sequer mostrar receio pela minha falta de hospitalidade, o estranho retirou um cigarro do bolso das calças, segurou-o com dois dedos e encostou-o à testa.
- Dave? – exclamei.
Ele sorriu em resposta.
- Meu Deus!
- Estava a ver que te tinhas tornado lerdinho, John. Ainda bem que não. Não fazes ideia da quantidade de pessoas que me vê e age como idiotas. Algumas nem são tão estúpidas como querem parecer, se me entendes. – e sorriu novamente.
- Desculpa, mas é que… Eu não te vejo há o quê? 3 anos?
- Por volta disso. Vejo que te livraste dos óculos. Pareces outra pessoa.
- Tu também. Que barba é essa?
- Gostas? Surgiu da noite para o dia. Deve mais á falta de higiene que às tendências da moda, garanto-te. – e riu-se, apenas para mudar de expressão quase imediatamente – Ouve John, não vou mentir-te. Por mais que gostasse de ter vindo visitar-te pela nossa amizade, a verdade é que preciso de abrigo para esta noite, e tu foste das únicas pessoas que não mudou de casa desde que o grupo se separou, por isso… Seria óptimo se eu pudesse dormir por aqui, só por esta noite.
Olhámo-nos em silêncio durante uns instantes. Acho que mesmo sem aquele pedido atabalhoado eu o teria convidado para entrar. Ainda admirava aquele profeta demasiado para lhe negar abrigo.
Entrou e sentou-se na minha velha poltrona, delicadamente. Interessava-lhe o que andava a ler, encorajou-me a não interromper só pela sua chegada. Não lhe dei ouvidos, nessa altura já estava a destrancar o quarto de hóspedes para o alojar, enquanto ele me gritava da sala.
- Não preciso de mordomias, John! A sério. Eu posso dormir em qualquer lado, no sofá, ou no chão! O único sítio onde não quero dormir é lá fora, porque não estive fora o tempo suficiente para esquecer o que esta cidade tem de pior.
Apesar disso, colocou o saco no quarto, ao lado da cama, e ajudou-me a fazê-la. Agradeceu-me e perguntou de tinha algo para comer. Fui até á cozinha e consegui desencantar os restos do meu jantar, frango, que ele devorou avidamente, mas sem esquecer as boas maneiras. Convidou-me a sentar-me á mesa com ele, para conversarmos.
- Ainda te lembras da última vez que estivemos juntos?
- Claro. Foi na festa da Leia.
- Rapaz! É verdade! E que grande loucura! Lembro-me perfeitamente! A nossa banda estava lá para tocar mas no fim da noite estávamos tão bêbados que nem conseguíamos pegar nos instrumentos! Ah Ah Ah! Que imbecis que éramos!
Ria-se como um maníaco, lançando grandes gritos a plenos pulmões.
- E a Leia vomitou em cima dos pais, quando chegaram a casa. – disse-lhe.
- Ah Ah! Isso foi impagável! Deves-te lembrar melhor disso que eu, John! Por essas horas já eu devia estar fora de serviço!
- Surpreendentemente não – sorri. – Creio que estavas fechado na casa de banho com a Mary Ann.
- Meu Deus! Lembras-te de tudo! É verdade, sim senhora! Mas ao contrário do que possas pensar, nunca cheguei ao pódio com ela. O que aconteceu foi que estávamos ambos tão bêbados que adormecemos por cima da sanita. Aposto que as histórias que ouviste soavam diferentes, mas é esta a verdade. A pobre rapariga nunca conseguiu desmistificar isso.
- Nunca mais ouvi notícias dela.
- Eu sim. Fechou-me a porta na cara quando lhe apareci à frente há cerca de dez dias. Foi uma das piores desilusões.
O silêncio instalou-se com isto. Dave já tinha acabado de dissecar o frango e olhava para mim fixamente.
- O que andas a fazer, afinal, Dave? – atirei-lhe.
- Muita coisa ao mesmo tempo, John. A minha cabeça não pára de trabalhar e isso está-me a deixar doido. Tenho de escoar as ideias, John. Reiniciar o sistema, percebes? Começar do zero.
Ninguém falou. Passado um momento, Dave levantou-se e foi atirar os restos de comida para o lixo e colocou o prato no lava-loiça.
- Vou dormir, John. Se soubesses como estou cansado... Desculpa por te pedir as coisas desta forma, mas prometo-te uma passagem breve pela tua vida, está bem? Amanhã, por esta hora, serei um fantasma ou uma ilusão e em poucos meses, nem te vais recordar que estive aqui. Com alguma sorte, nem eu…
O que lhe havia eu de responder?
- Boa noite, Dave.
- Boa noite, John.
E com isto, afastou-se e ouvi-o fechar a porta do quarto de hóspedes. Voltei o olhar para o livro do Jack, pendurado na poltrona, apaguei as luzes e fui dormir.