Hoje acordei e senti-me normal.
Fechei os olhos novamente e esfreguei a face, não fosse eu enganar-me e andar a perder tempo a acordar em sonhos traiçoeiros. Quando os abri, ainda lá estava aquela sensação, aquela normalidade. E o cansaço? A preguiça de uma segunda-feira de manhã? E a revolta? Raios! Nem contra a minha condição de pessoa normal me conseguia revoltar! E a angústia? De ir trabalhar, para um emprego odioso, de apanhar autocarros, comboios, apinhados de gente mal-disposta e, definitivamente, nada normal.
Nada. Nem uma pontinha de desconforto, de alegria imbecil, optimismo ingénuo, nada.
Sem nenhum queixume, levantei-me da cama e avancei para encarar o espelho. Até o meu reflexo era neutro, indistinto. Era eu, sabia-o, mas desejava que não fosse. Olhem para mim. Se desviasse agora o olhar, não me passariam pela cabeça cinco adjectivos para definir o meu rosto.
- Quem é aquele ali a escovar os dentes por cima do lavatório?
Não sei.
- E o outro que se penteia em gestos mecânicos, com um velho pente de marfim?
Também não conheço. Mas tem mau aspecto, o magano.
Ao pequeno-almoço, a comida não me pareceu pesada na boca, ou enjoativa. Mastigar aqueles cereais de aveia já não era uma função biológica essencial, era uma tarefa. Dei por mim a contar o número de colheradas que levava à boca e parei quando faltava uma pequenina poça de papa lamacenta no fundo da tigela. Era a mesma poça que tinha esfregado e deitado cano abaixo no dia anterior, mas cá estava ela de volta. E o chato é que me gozava, sabia que eu não a conseguia comer, que o meu instinto mecânico estava programado para a deixar ali, a secar todo o dia no lava-louça, até eu chegar à noite a casa.
Não deixava de ser curioso. E estivesse eu menos normal do que me sentia, era capaz de a ter tragado, só pelo sentimento de vingança mesquinha.
Ainda cheguei a vestir-me, normalmente, mas foi quando abotoava os punhos da camisa que me apercebi que hoje não ia sair para trabalhar. Como podia? Assim como me sentia (se é que sentia, será a normalidade um estado? Ou a ausência de outras tantas formas de estar?) ainda era capaz de passar um dia normal, sem incidentes, operar as máquinas (as outras), almoçar na cantina, contar piadas aos colegas. Como é que eu ia encarar isso?
Peguei no telefone e meditei alguns segundos, com o auscultador na mão. Podia telefonar a dizer que estou doente, que me acorreu um surto de… de quê?! Ou antes, telefono e digo que está tudo bem, mas hoje não vou poder trabalhar porque não fui atacado por qualquer espécie de enfermidade ou mal-estar. Havia de pegar, essa!
Pousei o aparelho. Dirigi-me à sala de estar. Tudo lá dentro me pareceu normal. Olhei pela janela. Normal. Acendi a televisão. Normal. Liguei a rádio. O homem da meteorologia anunciava que não ia chover, que estava Sol, mas não calor.
“Por isso, senhoras e senhores, podem contar com um dia normal.”
Deu-me vontade de chorar. Mas o mais triste é que não sentia qualquer tristeza. Ou alegria. Ou qualquer merda de sensação que me tirasse deste marasmo.
Levantei-me. Fui até à salinha que ligava com o meu quarto. Abri a última gaveta da cómoda e tirei para fora uma caixinha de madeira, enrolada num pano. Voltei à sala e poisei-a nos joelhos. Abri-a cuidadosamente e tirei para fora a minha antiga pistola do exército, que me tinham deixado guardar como boa recordação. Ao lado tinha uma caixinha com balas. Coloquei seis no barril. Fechei, tranquei e poisei a arma no sofá. Acerquei-me da mesinha do café à minha frente e puxei de um bloco amarelo e um lápis. Rabisquei umas palavras, apaguei, escrevi outras, arranquei o papel e prendi-o na parede. Voltei a outra mão para a arma, encostei-a à testa e rebentei com a cabeça.
“Hoje acordei e senti-me normal. Em vez de me chatear com isso, preferi enfiar uma bala nos cornos. Boa noite.”